O CORAÇÃO BÁRBARO DO BRASIL, Rachel de Queiroz
Publicado em Flagrantes do Brasil, de Jean Manzon (Bloch Ed., 1956)
Uma das mais fortes emoções que o papel impresso já me proporcionou, devo-a ao cidadão do mundo, Jean Manzon. Era uma fotografia, e representava um guerreiro Xavante de arco esticado, a seta apontada para o céu, pontaria alçada contra o avião cuja sombra negra lhe aparecia ao lado. Além de toda a fôrça plástica de quadro tão belo, havia ainda um elemento dramático, eterno, na-quele flagrante. Era o próprio coração bárbaro do Brasil, enfrentando o mundo, o choque inicial do homem primitivo contra os engenhos mais modernos da civilização – era assombroso constatar que o selvagem não se apavorava, que sozinho e nu no meio da selva enfrentava a espantosa ave de ferro carregada sabe Deus de que mistério e de que inimigos.
Publicado em Flagrantes do Brasil, de Jean Manzon (Bloch Ed., 1956)
Uma das mais fortes emoções que o papel impresso já me proporcionou, devo-a ao cidadão do mundo, Jean Manzon. Era uma fotografia, e representava um guerreiro Xavante de arco esticado, a seta apontada para o céu, pontaria alçada contra o avião cuja sombra negra lhe aparecia ao lado. Além de toda a fôrça plástica de quadro tão belo, havia ainda um elemento dramático, eterno, na-quele flagrante. Era o próprio coração bárbaro do Brasil, enfrentando o mundo, o choque inicial do homem primitivo contra os engenhos mais modernos da civilização – era assombroso constatar que o selvagem não se apavorava, que sozinho e nu no meio da selva enfrentava a espantosa ave de ferro carregada sabe Deus de que mistério e de que inimigos.
.....Essa fotografia foi feita em plena guerra, quando os tanques e os aviões de nazistas punham de joelhos a Europa inteira. Fazia bem, dava vontade de chorar, ver a cólera e a bravura do bárbaro no próprio instante em que metade do mundo, acovardada e vencida, enchia a gente de vergonha de pertencer à raça humana também.
.....Agora Manzon publica o seu álbum de imagens – este Flagrantes do Brasil, que se poderia chamar, como o livro de Paulo Prado, Retrato do Brasil.
.....Meu Deus, que grande superioridade têm as imagens sôbre as palavras! Imagens dispensam interpretações e comentários, imagens são numa coisa em si, concretas e incorruptíveis. E se as excelentes legendas de Orígenes Lessa enriquecem o álbum – a verdade é que elas não são indis-pensáveis, que palavras algumas são indispensáveis para explicar o que as imagens já dizem. Elas falam por si, e com que violência, e com que beleza! Dezenas de volumes não diriam sobre o Brasil uma parcela apenas do que elas dizem. Nem ufanismo ingênuo nem pessimismo esnobe. Apenas nós tal como somos, nus e crus, nas cidades e na floresta, no sertão, nos rios e no mar. O Rio de Janeiro na sua beleza incomparável e na sua indisfarçável miséria que sobe de morro acima e lá se exibe aos olhos de quem quiser ver. O carnaval, vítima de tanta literatura, falando desta vez a sua linguagem plástica, concentrando no preto e no branco, surpreendido nos seus momentos de maior abandono e força mágica. Muitos filhos de outras terras têm escrito sôbre o Brasil, têm procurado pintar o Brasil. Mas sempre usam de exageros quer de gentileza quer de má-vontade, sempre nos descrevem piores ou melhores do que somos, eldorado cheio de araras e de orquídeas, terra de mistérios que depois de quatrocentos e cinqüenta anos continuam ainda sendo “uma promessa”. É o “país do futuro”, do “slogan” e é a realidade de miséria, doença e desordem política.
.....Jean Manzon preferiu não falar. Deixou que seu depoimento fosse gravado pelo olho da câmera, que não mente, que é de vidro e matéria plástica e metal branco, não tem ouvidos para escutar lisonjas nem mão para propinas. É o registro mais veraz que o homem inventou, é o inimigo da mentira trabalhando com luz e papel branco.
.....E talvez agora o mundo, vendo esse nosso retrato honesto, fique nos conhecendo melhor, nos ignorando menos; talvez aqueles que nos imaginam apenas como mestiços indolentes tocadores de violão, sintam agora por nós um respeito maior, vendo como somos uma gente laboriosa, resistente, humilde, destemida e cordial. Que somos realmente um povo.
.....Agora Manzon publica o seu álbum de imagens – este Flagrantes do Brasil, que se poderia chamar, como o livro de Paulo Prado, Retrato do Brasil.
.....Meu Deus, que grande superioridade têm as imagens sôbre as palavras! Imagens dispensam interpretações e comentários, imagens são numa coisa em si, concretas e incorruptíveis. E se as excelentes legendas de Orígenes Lessa enriquecem o álbum – a verdade é que elas não são indis-pensáveis, que palavras algumas são indispensáveis para explicar o que as imagens já dizem. Elas falam por si, e com que violência, e com que beleza! Dezenas de volumes não diriam sobre o Brasil uma parcela apenas do que elas dizem. Nem ufanismo ingênuo nem pessimismo esnobe. Apenas nós tal como somos, nus e crus, nas cidades e na floresta, no sertão, nos rios e no mar. O Rio de Janeiro na sua beleza incomparável e na sua indisfarçável miséria que sobe de morro acima e lá se exibe aos olhos de quem quiser ver. O carnaval, vítima de tanta literatura, falando desta vez a sua linguagem plástica, concentrando no preto e no branco, surpreendido nos seus momentos de maior abandono e força mágica. Muitos filhos de outras terras têm escrito sôbre o Brasil, têm procurado pintar o Brasil. Mas sempre usam de exageros quer de gentileza quer de má-vontade, sempre nos descrevem piores ou melhores do que somos, eldorado cheio de araras e de orquídeas, terra de mistérios que depois de quatrocentos e cinqüenta anos continuam ainda sendo “uma promessa”. É o “país do futuro”, do “slogan” e é a realidade de miséria, doença e desordem política.
.....Jean Manzon preferiu não falar. Deixou que seu depoimento fosse gravado pelo olho da câmera, que não mente, que é de vidro e matéria plástica e metal branco, não tem ouvidos para escutar lisonjas nem mão para propinas. É o registro mais veraz que o homem inventou, é o inimigo da mentira trabalhando com luz e papel branco.
.....E talvez agora o mundo, vendo esse nosso retrato honesto, fique nos conhecendo melhor, nos ignorando menos; talvez aqueles que nos imaginam apenas como mestiços indolentes tocadores de violão, sintam agora por nós um respeito maior, vendo como somos uma gente laboriosa, resistente, humilde, destemida e cordial. Que somos realmente um povo.
Rachel de Queiroz: escritora e jornalista cearense (17/nov./1910 - 4/nov./2003), autora, entre outros, de O Quinze, As Três Marias, Dôra, Doralina e Memorial de Maria Moura; colaboradora desde os anos 30 de jornais como Correio da Manhã, O Jornal e Diário da Tarde, além de cronista da revista O Cruzeiro; em 1977 tornou-se a primeira mulher eleita para a Academia Brasileira de Letras. Faleceu, com quase 93 anos, dormindo em sua rede, na cidade do Rio de Janeiro.
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