Neste Dia da Internacional, em que nós, mulheres, somos especialmente lembradas, reproduzo o bate-papo amigável de duas grandes amigas nossas, personagens inesquecíveis daquelas que talvez sejam as maiores obras-primas da literatura brasileira.
Uma delas é Capitu, criada por Machado de Assis para, em Dom Casmurro, protagonizar uma relação no mínimo dramática com o seu marido Bentinho, na segunda metade do século 19, no Rio de Janeiro, então capital da República do Brasil. A outra é a jovem jagunça Diadorim, de Grande Sertão Veredas, de autoria de Guimarães Rosa, que no final daquele mesmo século se traveste de Reinaldo para poder integrar as tropas de Juca Ramiro que vagam pelos “sertões das gerais”.
O texto, do jornalista Daniel Piza, foi publicado na íntegra no Estadão de ontem (6/3/2010, Caderno Cultura, p. D3) e interessa porque revela com humor a dura condição feminina nessa nossa sociedade regida por homens ao longo de toda a história.
Capitu – Sempre quis conhecê-la, Diadorim. Achava que você fosse mais alta, mais forte, sabia? Bobagem minha.
Diadorim – Nunca precisei ser alta e forte para enfrentar os homens. Eu é que não sabia que você era tão alta e forte.
Capitu – Hoje está meio fora de moda, né? No meu tempo, porém, não tinha um homem que não olhasse para mim nas ruas.
Diadorim – Moda não me importava, você sabe. Até que eu gostava de passar uns perfumes quando tomava banho de madrugada, longe das tropas. Mas você sempre foi chegada a esses salamaleques, joias, vestidos, bailes...
Capitu – Se nós duas não tivéssemos morrido tão jovens, você mais jovem ainda, eu ia levá-la para passear pela rua do Ouvidor e duvido que resistisse. Por sinal, que coincidência que a gente se conheça neste Dia da Mulher.
Diadorim – Ora, não vejo muito sentido nisso, não. Dia de mulher é todo dia; todo dia as mulheres de hoje precisam defender de novo os direitos que já são nossos há muito tempo. Esses cabras são fogo.
Capitu – É verdade. Eu mesma: até hoje, quando falam de mim,é como se eu fosse ou inocente ou traidora. Os homens só conseguem imaginar as mulheres de um jeito ou de outro. Virei uma charada mundial!
Diadorim – Minha situação não foi diferente. Agora, como você aguentava aquele marido? Eta homem frouxo, sô!
Capitu– É que o Bentinho era tão apaixonado por mim, e me prometia uma vida tão boa. Meu erro foi achar que eu ia controlar tudo, que ele ia amadurecer aos poucos. Mas ele era um eterno adolescente, tanto que precisou escrever um livro sobre si mesmo e ainda assim continuou sem se conhecer... De quebra só me pôs falando absurdos sobre “coincidências divinas”. Ele era o primeiro a acreditar nessas coisas!
Diadorim – Mas pelo menos a gente vê ali que era um covarde. No sertão, esse aí não durava nem dois dias.
Capitu – E olhe lá... Mas confesso que queria que tudo tivesse sido diferente. Tive de ser
“mais mulher do que ele era homem”, como ele mesmo reconheceu no livro.
Diadorim – E eu tive de ser menos mulher... Não tive escolha; meu dever era com meu pai, eu tinha de ser varão para que ele continuasse comandando tudo. Não fosse por isso, teria dito a Riobaldo quanto o amava também. Aquele sim era homem, viril e gentil, Tatarana na hora da guerra e quase um menino na hora em que ficava me olhando, quase um passarinho. “O sol entrado”, não é bonito isso?
Capitu – Bentinho não fica muito atrás: “Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve.” Você falando assim, parece que Riobaldo era uma mistura de Bentinho com Escobar, se bem que Escobar sabia ser doce quando queria... Mas você era sol e era lua também, como eu. Foi por isso que disse que nossa situação era parecida?
Diadorim – Foi. Tem gente por aí que acha que Riobaldo não era macho, porque ficou apaixonado por Reinaldo, não por Diadorim. Ele era, sim! É que era um homem mais sensível que aquela jagunçada tosca. Sabia ler, escrever, sabia admirar as coisas bonitas. Ele via Diadorim debaixo de Reinaldo.
Capitu – E ele sofreu muito, não sofreu? Bentinho não via nada porque não sabia ver. Mas imagino um jagunço sentindo atração por outro, sem saber que na verdade era uma mulher – e só sabendo depois que você morreu. “O diabo não existe, por isso é tão forte.”
Diadorim – Ou “Deus é o poeta, a música é de Satanás”... A nossa história é uma tragédia ainda maior que a sua. Ele não podia ver a verdade; eu não podia contá-la. Mas minha vida não teria sido nada sem ele. Quando li o livro, senti que ele pensava da mesma forma.
Capitu – A verdade é que a gente deixa os homens bem confusos. O problema deles é que demoram a perceber as diferenças. Depois se desiludem quando elas aparecem.
Diadorim – E nós percebemos muito rápido, e mesmo assim nos iludimos também. Foi bom aprender com eles a ser mais direta, a tomar iniciativa.
Capitu – Eu sempre tomei iniciativa. O problema é que tinha de fingir que não tomava. Minha vida toda tive de esconder o que sentia.
Diadorim – Eu também, nem preciso lembrar.
Capitu – Hoje não é muito diferente. Mas, sabe, sinto inveja dessas mulheres que podem trabalhar e votar e passar cantadas...
Diadorim – Melhorou muito, graças também a esses homens que escreveram nossa história. Como diz o meu, sertão é dentro da gente; mas talvez hoje existam mais veredas. Caminhar sempre dá trabalho.
Plausível a ideia de unir duas persoagens da literatura brasileira num diálogo que retrata o papel da mulher e seus dramas sentimentais ontem e hoje.
ResponderExcluirAcho insigificante comemorar esse dia 8 de março uma vez que a mulher a cada dia vem conquistando o seu espaço na sociedade e incutindo valores e conceitos que são próprios da sua personalidade sem travar guerras comparativas a classe masculina.
A mulher nunca e nem precisa ser igual aos homens. Ela é ser singular e única e ao seu modo de fazer acontecer a vida pode punhar a sua história.
Meu abraço a todas as mulheres guerreiras e inteligentes!!!!